Sol de Primavera – Por Luis Cosme Pinto | Revista Fórum

2022-10-08 02:58:39 By : Ms. Lorna Lee

O último general daqueles tristes tempos, João Figueiredo, tomava posse como presidente em Brasília. Lula comandava as greves no ABC, Paulo Maluf era governador biônico de São Paulo. Ah, e também bastante importante: Beto Guedes, com 28 anos, e Ronaldo Bastos, com 31, amigos do Clube da Esquina, encantavam o Brasil com uma parceria inesquecível.  

Pois é, vai longe, bem longe, o ano de 1979. Um ano amargo e também histórico.

O país sufocado pelo regime militar arrancou a mordaça e gritou pela Anistia, que não veio tão ampla, geral e irrestrita como queríamos. Mesmo assim, festejamos a volta dos brasileiros perseguidos, torturados e expulsos da nossa terra. A Anistia trazia esperança e um outro Brasil tentava surgir da escuridão.

Nesse mesmo ano, Beto e Ronaldo nos faziam cantar um novo sol, O Sol de Primavera. A música combinava lirismo e política, amor e natureza. Virou nome do álbum, apontado como um dos grandes da MPB. Com elegância mineira, Beto cantou a dor de um povo ferido e amargurado, mas que nunca desistiu da democracia.

Já choramos muito, muitos se perderam no caminho.

Mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer

 Sol de primavera abre as janelas do meu peito

 a lição sabemos de cor só nos resta aprender.

43 primaveras depois, o sol anda mais tímido que Beto Guedes.

Chuva, frio e uma cortina de nuvens cobrem os dias. Quando o sol nos olha é por pouco tempo.

As raras visitas provocam um alvoroço de janelas se abrindo. A barulheira assusta sabiás e rolinhas, mas não abala azaleias e manacás ainda sem flor. As roupas do Miguelzinho são estendidas antes das sete da manhã. Do carrinho, ele vê a mãe pendurar as meias, dois ou três cueiros, gorros, pijamas. À distância, quem fecha os olhos e se concentra consegue sentir um cheirinho de bebê.

Num varal dobrável em outra janela, a mãe estica toalha de mesa com desenho de frutas, um vestido e uma saia comprida, atrás, quase escondidas, calcinhas rendadas e um sutiã reforçado, um tanto bojudo.

No prédio em frente a pintura desgastada ganha vida. As pequenas varandas estão cobertas pelo colorido das roupas.

Uma mulher com fones de ouvido alinha nas cordas do varal meias, toalhas e lençóis. Se livra do cigarro e prende com pregadores de madeira panos de prato e uma camiseta. Dois gatos acompanham o serviço e aproveitam os raios do mormaço.

Um vizinho prevenido com o humor do clima paulistano inova. O morador, um rapaz de tatuagem e cabelos descoloridos, estende as roupas e depois cobre tudo com um saco plástico azul e transparente. Chova ou faça sol, em algum momento tudo estará seco. Questão de tempo.

No andar de cima, um varal lotado descansa pendurado na janela e outro, um pouco maior, ocupa a sacada da sala. Não falta nada em nenhum deles. Jeans, camisa social, vestido, cuecas; enxergo também roupas de criança, um par de tênis, meias coloridas misturadas, uma toalha roxa, outra verde, lençol de casal e um daqueles com elástico; tem também uma camiseta do Vasco e, num gancho na parede, um agasalho de cachorro.

Cama, mesa, pet e ainda o que vai no guarda roupa. A manhã ganha sentido nas imagens de solidão, elegância e algazarra de família.

É a intimidade pendurada na janela. A vida estendida e úmida em busca de um sol de primavera, como o que nos iluminou em 1979 e que pode nos aquecer outra vez.

O hino de Beto e Ronaldo jamais será esquecido.

Já sonhamos juntos Semeando as canções no vento Quero ver crescer nossa voz No que falta sonhar

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.